A Câmara dos Deputados aprovou, na terça-feira, 18 de novembro de 2024, uma emenda ao Marco Legal do Combate ao Crime Organizado — conhecido como PL Antifacção — que suspende o direito ao voto de pessoas presas provisoriamente, mesmo sem condenação definitiva. A medida, apresentada pelo deputado Marcel van Hattem (Novo-RS), foi aprovada por 349 votos a favor, 40 contrários e uma abstenção, em sessão em Brasília. A mudança, que redefine o que significa ser cidadão no Brasil, coloca em xeque um princípio constitucional básico: a presunção de inocência. E não é só teoria. Se a norma entrar em vigor, Jair Messias Bolsonaro, atualmente em prisão domiciliar por envolvimento na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, poderá perder o direito de votar — mesmo antes de qualquer sentença final.
Um contrassenso chamado democracia
Van Hattem justificou a emenda dizendo que "não faz sentido" alguém afastado da sociedade decidir sobre seus rumos políticos. "Preso não pode votar. É um contrassenso, chega a ser ridículo", afirmou. Para ele, o voto exige liberdade e autonomia — condições que, segundo ele, não existem em uma cela. A justificativa técnica da emenda aponta ainda para "custos operacionais expressivos" e riscos logísticos na organização de urnas em presídios. Mas o que parece lógico para alguns é um retrocesso para outros. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e a própria Constituição Federal, no artigo 15, inciso III, só suspenderam direitos políticos após trânsito em julgado — ou seja, quando a condenação se torna definitiva. A emenda quer antecipar isso. Sem julgamento. Sem recurso. Só com a prisão.
A reação do PT e a ironia política
Curiosamente, o líder do Partido dos Trabalhadores (PT), Lindbergh Farias (PT-RJ), votou a favor da emenda — mas com um tom de ironia pesada. "Vamos votar 'sim' sabendo que é inconstitucional", disse. Ele não escondeu a intenção política: "Parece que o Partido Novo já abandonou Bolsonaro. Agora quer tirar o voto dele. Hoje, quem tem trânsito em julgado não vota. Agora, querem antecipar para a prisão provisória". A observação foi clara: a emenda, mesmo que disfarçada de combate ao crime, parece ter um alvo específico. E não é só Bolsonaro. A deputada Carla Zambelli (PL-SP), presa na Itália desde outubro de 2024 após condenação definitiva por perseguição, já perdeu o direito ao voto — mas Farias lembrou: "Se estamos falando de direitos políticos, temos uma deputada federal exercendo mandato presa na Itália. No mínimo, ela tinha de ser cassada imediatamente". A contradição é gritante: enquanto Zambelli foi punida com base na lei, Bolsonaro ainda aguarda julgamento. Por que, então, aplicar a mesma regra a ele agora?
O que vem a seguir: Senado, veto e STF
Agora, o projeto segue para o Senado Federal, onde será relatado pelo senador Alessandro Vieira (MDB-SE). Ele já sinalizou que analisará com cuidado os aspectos constitucionais. Se aprovado, o texto vai para a presidência — e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem tudo para vetar. Mas mesmo que sancionado, a norma enfrentará um muro de concreto: o Supremo Tribunal Federal (STF). Especialistas em direito eleitoral e constitucional concordam: a medida viola o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição, que garante a presunção de inocência até o trânsito em julgado. O STF já decidiu em 2022, no caso do ex-presidente Lula, que a prisão provisória não suspende direitos políticos. E não há razão para mudar esse entendimento agora. O risco? Um impasse institucional. O Congresso aprova. O presidente veta. O Congresso derruba o veto. O STF anula. O ciclo se repete. E a população fica confusa.
Um precedente perigoso
A emenda não é só sobre voto. É sobre quem decide o que é cidadania. Se o Estado pode retirar direitos políticos com base em prisão temporária, amanhã pode fazer o mesmo com direito à liberdade de expressão, à educação, ao trabalho. É um passo sutil, mas profundo, rumo a um sistema onde a punição antecede a culpa. O Marco Legal do Combate ao Crime Organizado traz outras medidas duras: aumento de penas, apreensão de bens, criminalização de ataques a hospitais, escolas e redes de energia. Mas é justamente nesse contexto que a emenda do voto se destaca: não é um instrumento de segurança, é um instrumento político. E isso assusta. Porque, quando a lei é usada para silenciar adversários — mesmo que disfarçada de combate ao crime —, ninguém está seguro.
Quem mais pode ser afetado?
Além de Bolsonaro, há dezenas de políticos em prisão provisória por investigações em andamento — desde casos de corrupção até acusações de incitação à violência. Em São Paulo, por exemplo, ex-prefeitos e ex-secretários aguardam julgamento. No Rio, lideranças de milícias estão detidas sem sentença. Se a emenda for aprovada, todos perderão o voto. Mas o que acontece com os presos sem recursos, sem advogados, sem mídia? Eles também serão silenciados. E isso não é justiça. É exclusão. A democracia não se sustenta quando escolhe quem pode ou não participar. Ela se sustenta quando garante que todos — mesmo os que erraram — tenham voz, até que a lei decida o contrário.
Frequently Asked Questions
Como a emenda afeta o direito ao voto de presos provisórios?
A emenda suspende o voto de qualquer pessoa presa provisoriamente, mesmo sem condenação definitiva, o que contraria a Constituição e a jurisprudência do TSE. Atualmente, apenas quem tem trânsito em julgado perde o direito. Com a nova regra, bastaria uma prisão preventiva — mesmo que injusta — para perder o voto. Isso afeta milhares de cidadãos, especialmente os pobres, que não têm acesso a recursos jurídicos rápidos.
Por que a emenda pode ser considerada inconstitucional?
A Constituição Federal garante a presunção de inocência até o trânsito em julgado da sentença (art. 5º, LVII). O STF já decidiu, em casos como o de Lula, que prisão provisória não implica perda de direitos políticos. A emenda antecipa uma sanção penal sem julgamento final, o que configura violação direta da Carta Magna. Qualquer lei que contrarie a Constituição pode ser anulada pelo Supremo, mesmo após ser sancionada.
O que diferencia Bolsonaro de Carla Zambelli nesse contexto?
Bolsonaro está em prisão domiciliar, mas seu processo ainda não foi concluído — não há trânsito em julgado. Zambelli, por outro lado, foi condenada definitivamente em outubro de 2024 por perseguição, o que já suspende seus direitos políticos conforme a lei vigente. A emenda tenta aplicar a mesma regra a Bolsonaro antes da condenação, o que é o cerne da polêmica: punir antes de provar.
Qual é o papel do Senado e do presidente Lula agora?
O Senado, com relator Alessandro Vieira, pode alterar, rejeitar ou aprovar a emenda. Se aprovada, o presidente Lula pode vetar por razões de constitucionalidade — e tem apoio jurídico para isso. Caso o Congresso derrube o veto, o STF ainda pode anular a norma. O caminho é longo, mas o desfecho mais provável é a anulação judicial, como ocorreu com outras medidas similares no passado, como a tentativa de suspender votos de condenados em segunda instância.
Essa emenda é nova ou já aconteceu antes no Brasil?
Não é nova. Em 2018, uma proposta similar foi rejeitada pela Câmara por violar a presunção de inocência. Em 2022, o STF reafirmou que prisão provisória não suspende direitos políticos. O que é diferente agora é o contexto político: a emenda surge em um momento de alta polarização, com figuras como Bolsonaro e Zambelli no centro do debate. Isso transforma o que era uma ideia jurídica em uma arma eleitoral.
O que os especialistas dizem sobre o impacto na democracia?
Especialistas como o jurista Luís Roberto Barroso e a cientista política Maria do Socorro Silva alertam que a medida abre caminho para a "criminalização da oposição". Se o voto pode ser retirado por decisão política de prisão, a democracia perde sua essência: a representação de todos os cidadãos. A regra não combate crime — combate eleitores. E isso, mais do que qualquer lei, ameaça a própria base da república.